ALTA QUARENTENA – 4O POEMAS DE JOSÉ KOZER, 4O DESENHOS DE FRANCISCO DOS SANTOS – TRADUÇÃO DE RONALD POLITO E POSFÁCIO DE CONTADOR BORGES

ARTE EM TEMPOS PANDÊMICOS, Contador Borges, “A linguagem é um vírus…”, William Burroughs. Silenciosa resistência. O poeta, o artista, fiéis à sua philia e infiéis a tudo que os tira dos eixos, à volta soberana no interior do quarto, para retomar o mote de Xavier de Maistre, ou onde quer que estejam, não costumam separar arte e vida. Tal associação, aliás, basilar em certas  culturas, vide os procederes das sagradas práticas do Sutra que integram atividades como culinária, arrumação da cama, decoração de ídolos com arroz e flores, leitura, desenho, poesia, pantomima, manejo dos instrumentos musicais, à luz oblíqua de um isolamento parece adquirir maior significação ainda. Tempo e espaço, corpo e mente se fundem em simbiose perfeita de elementos nesse exercício diário na mescla de saberes mundanos e sagrados das linguagens, artes e ciências em um ambiente prévio, meticulosamente preparado para a prática do Dharma, referindo-se à recompensa religiosa pela meditação espiritual, do Artha, a aquisição de riquezas, e do Kama, ao qual os dois primeiros servem de estofo material e espiritual, responsável pela arte do amor e da satisfação sexual, sendo estes os principais domínios e dimensões da vida na cultura milenar indiana, sintetizados na tríade: virtude, riqueza e prazer, conforme as leis de Manu. É tentador imaginar algo semelhante, embora não propositalmente, operando em Alta Quarentena, de José Kozer e Francisco dos Santos, em que os domínios do intelecto e da vida cotidiana se mostram amorosamente entrelaçados e a leitura do livro deixa a sensação de que os signos podem respirar em tempos pandêmicos, ou mais do que isto: através da poesia e da arte acessamos uma deriva especial, uma dimensão única em que não se perde de vista o real, mas, ao contrário, permite que ele ressurja nas filigranas da obra a despeito do que em nome de nosso tempo se ergue como atual, ou seja, a própria pandemia, seus efeitos na subjetividade, nos corpos e no mundo. Mas há um dado singular: em Alta Quarentena, antes que tenha qualquer noção   da obra, o leitor já sabe, pelo título, que é seu contemporâneo, e diante dessa certeza não pode recuar. O título conta, assim, com sua adesão imediata, solidária, e mesmo   sem ter lido uma só linha do poema ou se familiarizado com os desenhos anunciados na capa, ele se sente tomado por uma estranha sensação de proximidade em relação ao que ainda desconhece. Contemporâneos, sem dúvida. O título fornece a senha: o tempo é este mesmo em que se vive, incerto, sombrio, extremo, diante de um presente que não quer deixar de ser, e de um devir que jamais devém em nome de um acontecimento que apague o anterior (atualíssimo), mas que, ao contrário, mantém-se em regime de                obsedante repetição, à roda viva do imponderável (cego) retorno. Arte em tempos pandêmicos. Sim, e em duas vias de produção possível (haverá outras?): a que faz desse acontecimento epocal seu objeto, direta ou indiretamente, e a que se produz em sua margem movida por forças próprias em função de um plano ima-nente exclusivo e independente, sendo nesta segunda via que se inscrevem de corpo e alma José Kozer e Francisco dos Santos. Se é possível dizer que um determinado tempo se notabiliza por seu caráter intransigente, um acontecimento (ou vários), um conjunto de fenômenos que o configuram em soberana circumstantia, seja uma pandemia (a nossa), ou uma guerra (iminente?) anacrônica, como todas as guerras, a produção artística também se vale de suas próprias exigências, as quais nem sempre respondem diretamente ao real presente, mas a uma outra dimensão do real, despertando nossos sentidos e abolindo de imediato o que no real figura como terrível. Afinal, “todo es mensurable, / nada inconmensurable / no hay desmesura sino / la Muerte”. Mencione-se, ainda, o processo pelo qual um autor cria e subtrai, preenchendo as superfícies (via di porre) e tirando, excluindo (via di levare) os signos, trabalho tão econômico quanto sacrificial, e que nunca está completo, sendo por isso que ele continua produzindo sem, no entanto, apagar os vestígios do tempo lacunar da morte que parece insinuar-se por trás de seus gestos nesse jogo intermitente, paradoxal, entre o contínuo e o descontínuo: se qualquer experiência humana se defronta com a descontinuidade, o que anima todas elas são as ocasiões em que de um modo ou de outro se alcança um sentimento de continuidade. A experiência erótica é isso, assim como a religiosa, a poética ou artística. E se o trabalho da arte resulta da diferença operacional dessa dinâmica em meio ao tempo lacunar da morte (referência última de qualquer atividade), subjetivamente ao menos a obra, assoberbada, se produz em exercício de “soberania diante da morte”, como diz Blanchot. Decerto que o fim de uma pandemia é um desejo, uma esperança, uma aposta (aflita) na descontinuidade que nos liga sem apelos a este tempo que nomeamos de terrível e seu real de ocasião manifesto, cuja caricatura é a do coronavírus (as ironias da arte). O continuum do acontecimento pandêmico não nos interessa, obviamente. Mas a boa dinâmica que alterna o curso de algo e o suspende no modus operandi temporal sim, à maneira de uma “continuidade das espécies” configurada em arte: “La mariposa / polinizada / cae / a / tierra, / de / su / ocelo / a / la / mesa / un / pan / redondo / asperjado / de / ajonjolí”. Sem dúvida, pode-se dizer com o poeta, acrescentando que a lógica da queda só é possível em um mundo geocêntrico. E, num escopo mais amplo, que tal dinâmica é agente perpétuo não só da longa e multifária história da literatura e da arte, como também da própria vida. Claro que se trata de diferentes montagens, irredutíveis entre si, estrutural e materialmente em suas formas específicas de linguagem: jamais a estruturação poética de referenciais na arte encontra correspondência exata em algo semelhante acontecendo no real concreto, tal como o nosso de agora, virótico (e virulento), estampado na microscopia dessa criatura esférica e colorida cheia de patinhas de ventosas. No poema citado, a “continuidade das espécies” opera por metamorfose, vale dizer, em descontinuidade de unidades e elementos identitários entre si. Seu ser resulta em um compósito através do qual são gerados novos rebentos e prodígios. É assim que poetas e artistas exercem uma espécie de resistência silenciosa em suas atividades, uma forma apaziguada, confortadora de recusa em relação àquilo que o próprio tempo sinaliza como ameaça e negação da vida.

R$ 180,00

Autores: José Kozer / Francisco dos Santos
Tradução: Ronald Polito
Posfácio: Contador Borges
ISBN: 978-65-89846-20-8

Informação adicional

Peso 1.000 kg